Introdução
A família é uma construção cultural que, assim como as diversas outras instituições sociais ejurídicas, sofreu e ainda sofre alterações em sua concepção e em sua formulaçãoao longo do tempo e do espaço.[1] Tal concepção de família,vista sob o viés histórico, possui extenso reconhecimento doutrinário, sendoamplamente aceita a noção de que o contexto histórico influencia diretamente nafunção dos institutos jurídicos.
Da mesma forma, ocontexto histórico influenciou o desenvolvimento da psicanálise e implicou emsua relação com a realidade e o mundo externo. Freud utilizou elementosobservados a sua volta como base para criar suas teorias sobre a mente e ocomportamento humano. O passar do tempo e as mudanças sociais afetam não só as transformaçõesno sistema jurídico, mas também a complexificação dos conhecimentos acerca dossentimentos humanos.
Partindo de talpressuposto, ao se analisar as mudanças ocorridas nas últimas décadas na searado Direito das Famílias (a própria conjugação no plural já evidencia umamudança importante) e os avanços nos estudos acerca do funcionamento doinconsciente, cabe se questionar qual sentimento é colocado em evidência nomomento em que se busca o judiciário para a fixação de um culpado no rompimentode um vínculo matrimonial.
Análise histórica
Fortementeinfluenciado pelo Direito Canônico, o que se entendia por família no momento dapromulgação do Código Civil de 1916 era diametralmente oposto ao que se observana atualidade. A unidade na concepção de arranjo familiar nos levava aoindispensável requisito da matrimonialidade para o seu reconhecimento.
Enquantoos avanços legislativos e jurisprudenciais, amparados pelas mudanças sociais,nos levaram a visualizar o afeto como elemento central para a noçãocontemporânea de casamento, na época, o formalismo estrito e a ausência depossibilidade de rompimento do vínculo vigoravam em sua essência. Ainda sobenorme influência religiosa, o casamento era tido como um sacramento perpétuo eindissolúvel. Não havia no ordenamento jurídico nenhum instituto que pudesse sequerse assemelhar ao divórcio.
Todavia,a noção de eternidade dos sentimento e das relações foi abalada pela vidamoderna e, onde o indivíduo encontrava maior estabilidade e segurança -casamentos e famílias - passou a visualizar, muitas vezes, incertezas.
Ospilares do amor moderno começaram a não trazer opções aos desafios propostosnos cenários sociais dos finais do século XX e, tal como entrou em crise, omodelo do “até que a morte nos separe”, também começou a se tornar evidente asfendas do ideal das “almas gêmeas” e da “metade da laranja”, que encarnaram autopia do casal como uma unidade autossuficiente (FUKS, 2008, p. 34).[2]
Ochamado “desquite”, mostrava-se como a única possibilidade de romper com omatrimônio, sem, no entanto, o dissolver. Funcionava somente como uma forma dedesobrigar os cônjuges do cumprimento dos “deveres conjugais”, bem como previaa separação de corpos e extinguia o regime de bens, sem, contudo, determinar aextinção do vínculo matrimonial, o que impossibilitava a realização de novocasamento.
Somentecom a promulgação da Emenda Constitucional 09/1977, o divórcio passou a seradmitido no Brasil. Todavia, tal direito estava condicionado à prévia separaçãojudicial por mais de três anos e somente nos casos expressamente previstos emlei. Assim, a dissolução do casamento era um ato condicionado.
AConstituição de 1988, por sua vez, institucionalizou o divórcio, não mais comcaráter de excepcionalidade, e reduziu o prazo de separação judicial para doisanos, além de afastar a necessidade de identificação de uma causa para a suaconcessão (CF 226, §6).[3]
Ohistórico interesse estatal em preservar o casamento fez o instituto da culpamigrar para o âmbito do Direito das Famílias. A tentativa sempre foidesestimular sua dissolução, intimidando os cônjuges com a inquirição de culpase identificação de culpados, acabando por aplicar penas, no mais das vezes, deconteúdo econômico (...). Dita postura punitiva sempre contou com um dado deordem psicológica: a enorme dificuldade de qualquer pessoa de romper com um vínculoque foi estabelecido para ser eterno. Nesse sentido, buscava-se imputar aooutro cônjuge qualquer ato que importasse em grave violação dos deveres docasamento, de modo a tornar insuportável a vida em comum.[4]
Assim,o Código Civil Brasileiro, elencou, em seu artigo 1573, uma espécie de “rol de culpas”,de redação similar ao artigo 5º da Lei do Divórcio (6515/1977[5]) impondo ao cônjuge odever de identificar o comportamento do par. Tal rol, no entanto, mostra-seextremamente aberto, com certos incisos demasiadamente amplos. Um exemplo dissoé a previsão de “conduta desonrosa” como legitimadora da impossibilidade davida em comum. Resta, no entanto, a dúvida: o que seria uma conduta desonrosa?Tal conceito não variaria de casal para casal?
Anecessidade de se provar nos autos a existência de tal conduta desonrosa estimulavao litígio e a exposição desnecessária da intimidade do casal no bojo doprocesso.
Comoconsequências da sentença declaratória de culpa no divórcio, o cônjuge culpadopoderia perder a guarda dos filhos[6], ser forçado a retirar osobrenome do consorte[7] e perder o direito apleitear alimentos, mesmo que assim os necessitassem.[8]
Como propício advento da Emenda Constitucional 66/10, o poder constituintederivado extinguiu os prazos para o divórcio e eliminou a figura da separaçãojudicial do cenário jurídico brasileiro. Assim, ainda que permaneça na lei aprevisão do §2° do art. 1.580 do Código Civil de que a comprovação da separaçãode fato por mais de dois anos é requisito para que o divórcio seja requerido, anorma constitucional importou na revogação implícita do referido dispositivo.
Apesarde se prescindir a identificação de uma causa para a concessão do divórcio, abusca pela mesma continuou demasiadamente presente nos processos judiciais. Asimples ressignificação do sentimento e/ou término do amor não parecia motivoidôneo, em muitos casos, a justificar a rápida decretação do divórcio. Assimmesmo suprimida a separação judicial, permaneceu-se a busca incessante por umsuposto culpado, qual seja, aquele cônjuge que supostamente deu causa àfalência do matrimônio.
OInstituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões (IBDFAM), em seuenunciado 1, previu que a Emenda Constitucional 66/2010, ao extinguir oinstituto da separação judicial, afastou a perquirição da culpa na dissoluçãodo casamento e na quantificação dos alimentos. Tais enunciados, apesar de nãoterem força normativa, servem de diretriz para a criação doutrinária ereferência jurisprudencial no Direito das Famílias.
Todavia,o enunciado do IBDFAM não se mostra unânime dentre os operadores jurídicos doramo familiarista. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente Nacional eFundadora da Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS, entendeque a decretação da culpa no divórcio se mostra essencial para que infidelidades,agressões morais, dissipação de bens, dentre outros “graves descumprimentos dedeveres conjugais” não possam ficar sem consequências em nosso ordenamentojurídico.[9]
OSupremo Tribunal Federal (STF), no dia 08 de novembro de 2023, no julgamento doRecurso Extraordinário 1167478 (Tema 1.053) pavimentou o entendimento que asnormas do Código Civil que tratam da separação judicial perderam a validade coma entrada em vigor da Emenda Constitucional (EC) 66/2010. Segundo a decisão,depois que essa exigência foi retirada da Constituição Federal, a efetivação dodivórcio deixou de ter qualquer requisito, a não ser a vontade dos cônjuges.
Comisso, cabe questionar-se também se ainda faz sentido se falar em culpa nadissolução da sociedade conjugal, ou se a insuportabilidade da vida em comum,sem atribuição de causa, já abarcaria todos os casos para a decretação dodivórcio, pela mera vontade de um cônjuge.
Osavanços legislativos e jurisprudenciais colaboraram para a progressiva perda deforça nos efeitos da decretação da culpa no divórcio: a guarda dos filhos deveser fixada sempre com base no princípio do melhor interesse da criança (trata-se de um corte epistemológico trazidopelo estatuto da criança e do adolescente – Lei 8.069/1990 e reproduzido notexto constitucional, principalmente no artigo 227); o nome é visto cada vezmais como um direito personalíssimo[10], e os alimentos entreex-cônjuges sendo cada vez menos comuns na realidade dos Tribunais brasileiros(com a inserção das mulheres no mercado de trabalho e a luta por paridade degênero).
RolfMadaleno diz que “por detrás da apuração da responsabilidade ou desseverdadeiro campeonato de culpas segue o homem perseguindo a transferência daresponsabilidade pessoal, pois casamento sempre foi uma coisa de dois, tantopara iniciar como para terminar, e se um deles foi a cabo de uma relaçãoconsiderado cônjuge mais culpado do que o seu consorte, certamente o embatedessa culpa não pode servir de empecilho para a dissolução do vínculo nupcial,e as questões materiais de algum dano pessoal precisam ser levantadas em searadiversa daquela que demanda a ruptura oficial do casamento”.[11]
Sabendoque eventuais ofensas à honra de parceiros podem ser alvos de ações judiciaisde reparação civil por danos morais na esfera cível, independente do trâmitedas ações no tocando ao Direito das Famílias, cabe se questionar a quem aindainteressa a atribuição de um culpado pela ocorrência de um divórcio e quaissentimentos tal sentença respalda.
OPoder simbólico do judiciário e o ressentimento das partes litigantes
PierreBourdieu, importante filósofo, etnólogo e sociólogo francês do século XX, emuma de suas principais obras, se dedica ao estudo do poder simbólico dasinstituições sociais.[12] Para ele, o podersimbólico é esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidadedaqueles que estão sujeitos a esse poder ou mesmo daqueles que o exercem.
Sabendoque a função típica do poder Judiciário é a de dirimir os conflitos que lhe sãolevados, com base na lei, e que todo cidadão, com base em uma perspectivarousseauniana de contrato social se submeteria à vontade do judiciário emdetrimento de uma liberdade absoluta utópica que inviabilizaria a vida emsociedade, é preciso que se pense em qual poder invisível uma sentença judicialque decrete a culpa de um dos cônjuges pelo término de um relacionamentoamoroso traz consigo imbuída.
SegundoBourdieu, o julgamento é igual ao consentimento, ou, em suas palavras, o sensoé igual ao consenso. Nesse sentido, o senso do juiz de quem estaria certo ounão, se é que é possível dizer isso sobre o fim de um relacionamento,respaldaria e traria mais legitimidade ao sentimento de correição frente a tallitigio. E, mais do que isso, ajudaria a pessoa a legitimar seus própriosressentimentos advindos do término de uma relação pensada originalmente paraser continuativa.
Ojudiciário, por meio do texto da sentença, incorporaria a vontade estatal e representariaum terceiro imparcial, dotado de legitimidade, capaz de transmitir para uma daspartes o sentimento de que ela esteve certa o tempo todo. Representaria paraela, então, a sensação de “justiça sendo feita”. Existe, no entanto, justiça quandoa temática é o fim de uma relação amorosa? O judiciário deve servir como formade legitimação sentimental? É possível, no ordenamento jurídico atual, que oEstado, na figura do juiz, ultrapasse seu poder decisório de administração dalide objetivamente exposta e assuma um papel moralista de averiguar qual dosdois consortes deu causa ao fim do liame marital?
Segundoa psicanalista Maria Rita Kehl, ressentir-se significa atribuir ao outro aresponsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em ummomento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do quevenha a fracassar”.[13]
Otérmino de um casamento, vinculo idealmente calcado pelo afeto, traz à tonadiversos sentimentos e, por muitas vezes, sofrimento. Visualiza-se no divórcioo fracasso de uma relação. Nesse sentido, o cônjuge ressentido transforma oex-parceiro em um algoz a ser punido.
Ementrevista datada de agosto de 2023[14], Maria Rita Kehl diz que amaneira mais eficaz de evitar o ressentimento é reconhecer nossa própriaparcela de responsabilidade nas circunstâncias que nos levaram a isso.
Aoinvés de se refletir sobre a própria contribuição para o ressentimento, lança-seabsolutamente a culpa sobre o outro e se investe toda energia emocional nalitigiosidade e na desqualificação do ex-consorte. Consequentemente, oressentimento desempenharia o papel inconsciente de proteger o ego do cônjuge.
Essaculpa, ao ser reconhecida em sentença, imbuída do poder simbólico dojudiciário, alimentará a narrativa ressentida e servirá para corroborar alógica litigiosa e bélica entre as partes.
Trata-se,então, de uma forma desesperada do cônjuge ressentido de negar efetivamente ofim da relação, dando continuidade a tal vínculo, mas agora, baseando-o emconstantes brigas e desentendimentos. Por sua vez, isso demonstraria uma formade mantê-lo unido ao ex-parceiro pelo liame oriundo do ressentimento, econsequentemente, adiaria o trabalho de luto inerente ao fim de uma relação.
Colocara totalidade da culpa do rompimento de um casamento em apenas um dos cônjuges écontraproducente e é, acima de tudo, injusto. A noção de conjugalidadecontemporânea já demonstrou que, em relações saudáveis, o casal deve ser umaequipe formada por duas pessoas, e a responsabilidade do término é semprecompartilhada. Assim, ao agir de tal forma o judiciário contribuiria para amanutenção do vínculo belicoso, indo de encontro à lógica do sistema jurídicode evitar o escalonamento litigioso do conflito.
Conclusão
Apesarde ainda haver defensores para a decretação de um culpado no divórcio, oordenamento jurídico nos apresenta alternativas de reparação para, em caso de infidelidadespúblicas que agridam a honra, agressões morais, dissipação de bens e outroscasos elencados fora das ações de divórcio.
Opoder simbólico que uma declaração judicial de culpa traz não só para as partes,mas para toda a sociedade, é a possibilidade de terceirização da “solução” paraos próprios sentimentos. Há uma falsa impressão de que após a sentença quedeclare um dos dois cônjuges como culpado a dor do termino estará curada. Será?
Mesmose não advier efeitos práticos da decretação da culpa, a simples declaraçãojudicial de que um dos cônjuges foi o único culpado para a falência domatrimônio já se mostra psicologicamente problemática, por alimentar um vínculode ressentimento entre as partes e transmutar para o judiciário um poder quevai além da sua capacidade institucional.
Buscarna justiça uma declaração de culpa para o fim do casamento é atribuir a umterceiro o poder de validação sentimental e correição pelo rompimento dovínculo matrimonial em detrimento do próprio trabalho interno e individual necessáriopara lidar com as dores advindas do divórcio.
Referências:
Bourdier,Pierre. O Poder Simbólico. Edições 70; 2ª edição. 2011.
Bodinde Moraes, Maria Celina. A Família Democrática. Revista da Faculdade de Direitoda UERJ, v. 13-14, p. 47-70, 2005.
CALDERÓN,Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito Brasileiro. 2a ed.. Rio deJaneiro: Editora Forense, 2017.
Dias,Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2017.
FUKS,Saul. A Relação do Casal como Organização Social. Nova Perspectiva Sistêmica,XVI, n. 30, p. 21-43, abr. 2008.
Kehl,Maria Rita. Ressentimento. Boitempo Editorial; 2ª edição. 2020.
Madaleno, Rolf. Separações e anulações –Culpa e responsabilidade ou fim da conjugalidade. Tratado de Direito dasFamílias. Capítulo 13. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015.
Tavares da Silva, Regina Beatriz. A Emenda Constitucional do Divórcio. SãoPaulo. Saraiva, 2011.
[1] 3BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Família Democrática. Revista da Faculdade deDireito da UERJ, v. 13-14, p. 47-70, 2005.
[2]FUKS, Saul. A Relação do Casal como Organização Social. Nova PerspectivaSistêmica, XVI, n. 30, p. 21-43, abr. 2008.
[3]Berenice Dias, Maria. 2017.
[4]Berenice Dias, Maria. 2017.
[5]Art 5º - A separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quandoimputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em graveviolação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum.
[6] Oartigo 10 da Lei do Divórcio era explicito em sua redação ao dizer que naseparação judicial requerida unilateralmente, os filhos menores ficarão com ocônjuge que a e não houver dado causa; Apesar da preferência legislativa pelo“cônjuge inocente”, o art. 13 da Lei do Divórcio previa a possibilidade de ojuiz dispor conforme o interesse da prole, independente dos comportamentos dospais que não relacionassem diretamente ao bem-estar da criança.
[7] Art.25, Parágrafo único. Lei 6515/77: Asentença de conversão da separação judicial em divórcio determinará que amulher volte a usar o nome que tinha antes de contrair matrimônio, sóconservando o nome de família do ex-marido se alteração prevista neste artigoacarretar: (Incluído pela Lei nº 8.408, de 1992)
I - evidente prejuízo para a sua identificação; (Incluído pela Leinº 8.408, de 1992)
II - manifesta distinção entre o seu nome de família edos filhos havidos da união dissolvida; (Incluído pela Leinº 8.408, de 1992)
III - dano grave reconhecido em decisão judicial.
[8] Art19 - O cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se delanecessitar, a pensão que o juiz fixar.
[9]Tavares da Silva, Regina Beatriz. AEmenda Constitucional do Divórcio. São Paulo. Saraiva, 2011.
[10] Possibilidadede conservação do patronímico, inclusive em caso de revelia, como decidiu oSuperior Tribunal de Justiça (STJ) em REsp 1.732.807-RJ em 14/08/2018.
[11]Madaleno, Rolf. Separações e anulações – Culpa e responsabilidade ou fim daconjugalidade.
[12] Bourdier,Pierre. O poder simbólico.
[13] Kehl,Maria Rita. Ressentimento.
[14] Entrevistadisponível no site: https://inb.org.br/ressentimento-e-sociedade/