Assim como os versos icônicos da música “Panis et Circenses” dos Mutantes proclamam que ‘’as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer’,’ essa visão dualista da vida também ecoa na legislação brasileira. O Código Civil brasileiro estabelece que a personalidade civil de uma pessoa começa no nascimento com vida e termina com a morte. Entre esses dois momentos, em geral, há um enorme hiato temporal. Mas nem sempre.
A arte e a filosofia já se debruçaram diversas vezes sobre o questionamento consistente na seguinte pergunta: Quem nasce morto não nasce? Esse é um dilema que tem ecoado nas salas de jantar de milhares de brasileiros e também no Congresso Nacional.
Nesse pano de fundo, a legislação brasileira se debruça sobre o tema complexo do natimorto, que vai além de questões puramente jurídicas. Envolve aspectos de saúde pública, como a prevenção de óbitos fetais, bem como desafios jurídicos relacionados ao registro e ao reconhecimento dessas vidas que não sobreviveram ao parto.
A recente edição do Provimento 151/2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1] representa um avanço significativo nesse contexto. Ao abordar a necessidade de regulamentar o registro de natimortos em cartórios, estabelece regras para a atribuição de nomes a essas vidas que não chegaram a sair das maternidades.
A ausência de uma definição clara na legislação brasileira sobre o conceito de natimorto tem sido um desafio há muito tempo. No entanto, órgãos como o Conselho Federal de Medicina forneceram diretrizes[2] que definem o natimorto como um feto com uma gestação igual ou superior a 20 semanas, peso corporal igual ou superior a 500 gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 centímetros.
Essa falta de clareza na legislação foi agravada pelo número significativo de óbitos fetais, que em 2022 alcançou 21.282 casos[3], tornando evidente a necessidade de uma abordagem mais completa e justa para lidar com a questão do natimorto no sistema jurídico.
O óbito fetal é uma questão delicada que representa um problema de saúde pública, mas também envolve considerações jurídicas importantes, principalmente no que diz respeito à atribuição de um nome, incluindo prenome e sobrenome, que represente a identidade da criança nascida morta. Para entender a importância do direito à identidade do natimorto, é necessário considerar a condição jurídica do nascituro, os direitos da personalidade e suas implicações no contexto brasileiro.
A legislação de registros civis estabeleceu a necessidade de registro do óbito fetal ou do natimorto, conforme previsto no artigo 53, §1º, da Lei 6.015/73. No entanto, a lei não prevê expressamente a inclusão do nome e sobrenome da criança nascida morta. Isso levou a uma situação em que, ao registrar o bebê, ele era apenas chamado de “natimorto”. No entanto, a lei oferece uma brecha ao mencionar que o registro deve conter “os elementos que couberem”, sem especificar quais informações podem ser incluídas.
Essa ambiguidade na lei permitiu que alguns familiares buscassem conferir dignidade à criança nascida morta, atribuindo-lhe um nome, apesar da designação legal de “natimorto”. Isso poderia ser feito por meio de uma ação de retificação de certidão de óbito, onde os pais poderiam pleitear a inclusão do nome escolhido para a criança.
O sofrimento e o abalo psicológico causados pela perda de um filho são difíceis de mensurar e devem ser levados em consideração à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. A atuação normativa de alguns estados em relação à possibilidade de registro público ao natimorto, incluindo nome e sobrenome, tem demonstrado ser possível e razoável.
No entanto, até a emissão do Provimento 151/2023 pelo CNJ, não havia uma norma técnica de força nacional que regulamentasse esse aspecto. Isso resultou em diferentes interpretações nos diversos estados do país, gerando inconsistências na prática dos cartórios de registros civis. Justamente para evitar tais inconsistências e diferenças estatais que a Constituição Federal traz em seu artigo 22, incisos I e XXV, que compete privativamente à União legislar sobre direito civil e Registros públicos, duas áreas que envolvem à temática.
Por mais que não se trate de uma lei em seu sentido material (elaborada pelo Congresso Nacional), o Provimento 151/2023 marca um avanço significativo nesse sentido, proporcionando uma orientação mais uniforme em todo o país. O CNJ, como órgão responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, emitiu esse ato normativo para esclarecer e orientar a execução dos serviços judiciais e extrajudiciais relacionados ao registro de natimortos.
O Provimento 151/2023 enfatiza a importância de considerar o natimorto como sujeito de direitos, incluindo os direitos da personalidade, como o direito ao nome. Também reconhece a necessidade de minimizar o sofrimento dos pais que enfrentam a perda de um filho tão esperado. Ao fazê-lo, o CNJ aborda uma lacuna na regulamentação que tem persistido por muito tempo.
Atualmente, o cenário legislativo também sinaliza uma mudança significativa. Encontra-se em tramitação o Projeto de Lei (PL) 4.899 de 2020, apresentado por Geninho Zuliani, membro do DEM/SP. Este projeto visa alterar o artigo 53 da Lei de Registros Públicos, abrindo caminho para o registro do nome e prenome da criança natimorta, deixando a escolha desses elementos a critério da mãe ou do pai. O texto proposto estabelece que “no caso de ter a criança nascido morta, natimorta, será o registro feito no livro ‘C-Auxiliar’, com os elementos que couberem, inclusive nome e prenome por livre opção da mãe ou pai.
Vale ressaltar que esse não é o primeiro esforço para promover a alteração legislativa. Em 2015, o então vice-presidente da República, Michel Temer, vetou integralmente um projeto de lei apresentado por Ângelo Agnolin, do PDT/TO, que previa o registro do nome do natimorto. A justificativa para o veto mencionava a possibilidade de interpretações que poderiam conflitar com o Código Civil, particularmente no que diz respeito às questões sucessórias.
Em um país onde as identidades natimortas foram por muito tempo relegadas ao silêncio, o CNJ se revelou um farol legislativo ao promulgar o Provimento 151/2023. Esse ato não apenas sinaliza o início de uma jornada para resgatar essas identidades que jaziam sepultadas nos túmulos do anonimato, mas também representa um avanço significativo.
Além disso, a medida em que o Projeto de Lei 4.899 avança, o Brasil vislumbra a perspectiva de uma solução abrangente e uniforme para uma questão que, por muito tempo, foi negligenciada. O registro de natimortos está se transformando em um ato de reconhecimento, um tributo às identidades que merecem ser lembradas e honradas. Dessa maneira, a dignidade dos natimortos deixará de estar presente somente nas salas de jantar e passará a integrar a realidade dos cartórios em todo o Brasil.
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[1] Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/biblioteca/clippinglegislacao/Provimento_152_2023_CNJ2.pdf
[2] RESOLUÇÃO CFM nº 1.779/2005. Publicada no D.O.U., 05 dez 2005, Seção I, p. 121. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2005/1779_2005.pdf
[3] É possível se chegar a tal dado utilizando os filtros “notificação de óbitos fetais e número de óbitos” em tal site: https://svs.aids.gov.br/daent/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/infantil-e-fetal/