A incidência de IR no pagamento de alimentos: uma contradição sistêmica

No dia 10 de fevereiro deste ano, os ministros do STF formaram maioria (6 x 0) para declarar a inconstitucionalidade da incidência do Imposto de Renda (IR) sobre os valores recebidos a título de pensão alimentícia.  O julgamento foi suspenso diante de um pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes.

A ação teve início após o ajuizamento da ADI n º 5.422 pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), questionando dispositivos da Lei nº 7.713/1988 e do antigo Decreto nº 3.000/1999, posteriormente revogado pelo Decreto nº 9.580/2018, que estabelecem a incidência do IR para pensões alimentares recebidas em espécie.

O IR possui como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica, independente da denominação ou origem do rendimento (art. 43, Lei nº 5.172/1966), de renda ou de proventos de qualquer natureza, que representem acréscimos patrimoniais ao sujeito passivo tributado.

No entanto, como bem explicitou o relator da ação, ministro Dias Toffoli, os valores de alimentos ou pensão alimentícia oriunda do direito de família não constituem renda nem provento de qualquer natureza do credor (alimentado).  Em verdade, são valores retirados dos rendimentos recebidos pelo alimentante para serem dados ao alimentado. Nesse sentido, o recebimento de valores a título de alimentos ou de pensão alimentícia representa tão somente uma forma de assegurar a necessária subsistência do alimentado, mas não uma renda.

De certo, os valores pagos a título de pensão alimentícia não representam um acréscimo patrimonial a justificar nova tributação. Em verdade, considerando que o alimentante já é tributado na renda, a tributação dos valores pagos a título de pensão finda por representar uma bitributação.

Tal panorama torna-se evidente ao observarmos que a restituição do Imposto de Renda é paga ao alimentante, escancarando que este tem sua renda tributada em duplicidade. Tributar como renda o recebimento de alimentos de relações oriundas do direito de família torna o sistema jurídico brasileiro contraditório no tocante a esse tema, por diversas razões.

Em primeiro lugar, ao se tributar uma verba alimentícia, quem sai em prejuízo é o próprio alimentado, que grande parte das vezes, é uma pessoa vulnerável (exemplo: criança ou adolescente). Parte deste dinheiro poderia ser investida em sua formação e em suas necessidades básicas.

Ao se fixar uma obrigação alimentar, leva-se em conta a possibilidade financeira do alimentante, a necessidade do alimentado e a proporcionalidade na fixação do valor a ser pago. Não se leva em conta, de forma direta, o imposto que incidirá sobre tal transferência financeira. Ora, a incidência do Imposto de Renda sobre verba alimentícia não se contrapõe com o princípio do melhor interesse da criança, inerente à sistemática do ECA e com previsão expressa na Constituição Federal (Art. 227, caput)?

Não é por outro motivo que, na advocacia familiarista, aconselha-se aos clientes que, em caso de eventual acordo entre os genitores, os alimentos sejam pagos in natura. Ou seja, coloca-se nos termos do acordo, que o genitor pagará, por exemplo, as mensalidades da escola, bem como as atividades extracurriculares. Dessa forma, não incidirá Imposto de Renda e a criança será mais beneficiada do que se fosse pago o valor equivalente a tais custos em dinheiro.

Inclusive, a prerrogativa de pagamento in natura da pensão alimentícia expõe mais um problema trazido pela incidência do IR nos valores pagos a título de pensão alimentícia: a evidente violação ao princípio da isonomia. Consubstanciado no artigo 145, § 1° da Constituição Federal, o princípio da capacidade contributiva impõe que a tributação seja pautada pela condição econômica do contribuinte, de modo que cada cidadão contribua para as despesas públicas na proporção de suas possibilidades.

Por óbvio, a tributação dos valores pagos a título de pensão alimentícia acaba por não atender ao critério da capacidade contributiva, diante da impossibilidade da tributação dos valores pagos in natura, em contraponto aos valores pagos em espécie, gerando uma desigualdade entre contribuintes em situações iguais.

Em segundo lugar, caso se considerasse (o que não é o caso) o recebimento de alimentos como renda, pode-se questionar o motivo da sua não inclusão entre o rol de rendimentos recebidos por pessoas físicas que são isentas do pagamento de Imposto de Renda (art. 6º da Lei 7.713).  O ordenamento jurídico pátrio considera a dívida alimentar com primazia em relação às demais obrigações. Tanto é assim que a dívida alimentar é a única hipótese de prisão civil no Brasil, tendo tal previsão, inclusive, status constitucional (art. 5º, LXVII, CRFB/88).

A Constituição Federal trata o recebimento de alimentos oriundas do direito de família como um bem jurídico suficientemente relevante para autorizar que um indivíduo seja preso caso não arque adequadamente com sua obrigação frente ao alimentado. Mas esse mesmo ordenamento jurídico não a considera um bem jurídico relevante o suficiente para ser isento de imposto de renda.  Um verdadeiro paradoxo.  

A incidência do imposto no caso em questão aponta nitidamente para uma inconstitucionalidade material, visto que o pagamento de pensão alimentícia visa a uma finalidade constitucional de prover o mínimo existencial de um indivíduo que não possui capacidade econômica no momento.

Desta feita, a cobrança do imposto implica diretamente a diminuição da prestação de alimentos e, consequentemente, a violação da dignidade. Além do evidente desvirtuamento de valores que possuem finalidades constitucionais, a tributação acaba por caracterizar dupla tributação, pois o Imposto de Renda já é recolhido pelo alimentante quando do recebimento de sua renda.  Assim, os valores pagos a título de pensão alimentícia não caracterizam aumento patrimonial a ensejar uma nova tributação e a posição do STF se mostra razoável e acertada.

1 Íntegra do voto disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/toffoli.pdf

* David Igor Rehfeld é sócio do escritório Pires e Kaufmann Advogados Associados

* Bruna Athayde Taveira é advogada do escritório Bichara Advogados

Acesse a página de publicação
Autor(es):
David Igor Rehfeld e Bruna Athayde Taveira
Publicado em 19/02/2022 no Estadão