Da dor inominada à banalização: a alienação parental na prática

Imagine a seguinte situação: após uma separação dolorida e bastante litigiosa, a cônjuge virago decide, sem mútuo consenso com o marido, mudar sua residência do Rio de Janeiro para o interior de Minas Gerais e levar consigo o filho em comum do casal, criança que contava, ao tempo da mudança, com 3 anos.

Ato contínuo, foi distribuída, na comarca da nova residência da mulher, uma ação judicial de divórcio, cumulada com guarda do filho em comum e partilha de bens. No bojo da ação, em audiência de mediação presidida pela magistrada, chegou-se a um acordo que, dentre outras coisas, determinou que a guarda seria exercida de maneira compartilhada, sendo a residência da criança estabelecida junto à mãe.

Restou estabelecido também que o pai poderia ter contato com o filho por videochamadas três vezes por semana, em horários previamente estabelecidos, devendo a mãe zelar para que a criança estivesse em um ambiente tranquilo que lhe possibilitasse a interação com o genitor. Ademais, a convivência presencial se daria de maneira mensal, um final de semana por mês. Durante o período de férias escolares, o pai poderia ter o filho consigo por 7 dias consecutivos.

Por morarem a quase mil quilômetros de distância um do outro, a convivência entre pai e filho demandaria não só um planejamento financeiro, mas também organizacional na agenda profissional do cônjuge varão, visto ser necessário viajar de avião, em uma rota com pouco tráfego aéreo. Apesar disso, estar com o filho era mais importante do que qualquer obstáculo, sendo os dias de convivência o momento mais esperado do mês.

Todavia, o que parecia se desenrolar em um acordo – não amistoso, mas minimamente civilizado – mudou de aparência no momento em que a mãe começou a criar diversos empecilhos tanto para as chamadas de vídeo, quanto para a convivência presencial. De saída, ela começou a não colocar o celular em um ângulo que propiciasse que o pai pudesse ver devidamente o filho e vice-versa. Isso passou a acontecer constantemente e não foi apenas um caso isolado. Em um segundo momento, ficou claro que a mãe se referia ao ex-marido como “moço” na frente do filho, induzindo-o a ter o mesmo comportamento, sem incentivá-lo a chamar de “papai”. Em uma das conversas por vídeo, o menino reproduziu tal comportamento, chamando o pai dessa forma.

O estopim, no entanto, se deu no dia combinado para a convivência de férias do pai com seu filho. Ele se deslocou do Rio de Janeiro para a cidade da residência materna e foi direto buscar o filho na escola para, em seguida, retornar ao aeroporto e levá-lo consigo para o Rio. No entanto, a mãe já havia buscado o filho e disse que não o entregaria ao ex-marido. Ao tentar buscá-lo no endereço de residência da mulher, foi impedido de ingressar pelo segurança, pois ela não se encontrava em casa, não atendia o interfone e tampouco o telefone. Sem outra alternativa, o pai fez um boletim de ocorrência na delegacia e ingressou no Judiciário com uma ação declaratória de alienação parental.

Ao entrar com a ação, em momento nenhum o objetivo foi desqualificar a ex-cônjuge no exercício de suas funções maternas. Foi tão somente impedir que ela continuasse com as atitudes alienadoras que vinha promovendo até então. Nesse sentido, o pedido da ação limitou-se ao : (i) pagamento de  multa, em valor a ser arbitrado por esse Juízo, toda a vez que a genitora descumprir o acordo de convivência em vigor e criar empecilhos para a convivência harmônica entre o autor e seu filho; (ii) a cada dois meses, levar o filho no segundo final de semana do mês ao Rio de Janeiro, arcando com todos os custos, como forma de aumentar a convivência paterna e diminuir os efeitos nocivos decorrentes da tentativa da ré de promover alienação parental; e (iii) enviar vídeos diários para o autor de algum momento da rotina do filho, com duração mínima de 30 segundos. Tudo o que se almeja é a manutenção (e o estreitamento) do laço paterno-filial.

Mesmo com a ação judicial já instaurada, no entanto, o comportamento da genitora alienadora não se alterou. Pelo contrário. Foi intensificado. Ameaças de que não entregaria o filho a tempo do voo comprado pelo pai, único disponível na data de feriado prolongado a que o pai fazia jus à convivência; desqualificações constantes do ex-cônjuge na frente do menino; invenções acerca de maus tratos ao filho durante o período de convivência com o pai, entre outras artimanhas “maldosas” (na falta de uma palavra melhor que não soe maniqueísta). Fato incontestável é que a mãe usava o filho como “arma de guerra” para atingir o ex-marido.

A alienação parental foi uma dor que permaneceu muitos anos sem um nome. Somente em agosto de 2010, entrou em vigor no Brasil a Lei 12.318, dispondo sobre o tema, com a intenção de trazer holofotes para tal fenômeno que, apesar de sempre ter ocorrido, mostrava-se cada vez mais crescente. Essa é uma prática grave, adotada com mais frequência, mas não exclusivamente, pela mãe (uma vez que, estatisticamente, a moradia de filhos pequenos ainda é fixada majoritariamente junto à genitora).

Nesse sentido, a Lei de Alienação Parental veio com o intuito de que o exercício do poder parental pelos genitores não extrapole os limites impostos não só pelo bom senso, mas pelo exercício do poder parental do outro genitor. Aqui, aquela velha máxima se faz presente: “a sua liberdade termina quando começa a do outro”. A lei vem para dizer o que deveria ser obvio: nenhum genitor pode se sentir “proprietário” de um filho.

O fenômeno da alienação parental pode resultar num aniquilamento da segurança e a autoestima de um filho, levado a repelir o genitor alienado, para se mostrar solidário ao alienador. Tal grave conduta pode ocorrer de diversas maneiras, tais como realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; dificultar o exercício da autoridade parental; dificultar contato de criança ou adolescente com genitor e diversas outras elencadas a título exemplificativo no artigo 2º da lei.

Quem é operador do Direito, independentemente do cargo que exerça, certamente já se deparou com diversos institutos jurídicos em que a sua utilização com propósitos diversos acabou por desvirtuar o objetivo inicial do que havia sido idealizado. Não foi diferente com a Lei de Alienação Parental. Lamentavelmente, o que se viu no Judiciário foi uma enxurrada de ações invocando tal lei, não objetivando os cuidados e a saúde mental dos filhos, mas perpetuando violências contra as mulheres.

Nesse sentido, o caso relatado não pode, de maneira nenhuma, ser utilizado como exemplo para reforçar o preconceito inerente a vocábulos como “mulheres loucas, desequilibradas, possessivas”. No entanto, é justamente por meio da sentença declaratória bem proferida, em casos em que a alienação parental é nítida, como o mencionado acima, que será possível construir uma jurisprudência distintiva e efetiva a respeito do que é e do que não é alienação parental.

A lei, obviamente, não tem aplicação automática e imediata. Mais do que invocada pela parte, para que a lei se mostre efetiva, o magistrado precisa ter coragem de aplicá-la. O que não pode ocorrer, de maneira nenhuma, é que, pela má utilização de tal instrumento processual em alguns casos, os magistrados tenham receio de proferir uma sentença declaratória e, por consequência, deem mais munição para que tanto o genitor alienado quanto a criança sejam lesados, muitas vezes, de maneira irreversível.

Afinal, parafraseando Legião Urbana, “todos os dias quando se acorda, não se tem mais o tempo que passou”.  E quando esse tempo perdido se refere ao contato com o filho nos primeiros anos de vida, o estrago pode ser permanente e destruir definitivamente uma relação.

1 Pachá, Andréa. A vida não é justa. Edição comemorativa de 10 anos. P. 36. Editora Intrínseca.

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Autor(es):
David Igor Rehfeld
Publicado em 01/02/2023 no Estadão