Entre a concessão de direitos e o estímulo de condutas

A relação entre fatos sociais e jurídicos é polêmica no direito civil. Segundo a doutrina do direito civil constitucional, todo fato social é juridicamente relevante. Contudo, nem todo fato é considerado fato social [1]. Por sua vez, a doutrina civilista clássica entende que nem tudo o que acontece no mundo fático interessa ao direito, não sendo a recíproca sempre verdadeira [2]. Constitui consenso, no entanto, o entendimento de que, no momento em que o direito se distancia da sociedade, há um distanciamento simultâneo do grau de legitimidade democrática atribuída a esse ordenamento.

O Direito, ao mesmo tempo em que protege a sua estrutura contra maiorias transitórias, deve se ligar aos acontecimentos e mudanças sociais [3], e a atuação do Poder Judiciário, nesse contexto, pode vir a contribuir para o aumento de tal distanciamento ou pode, por meio da hermenêutica adequada, tentar solucionar tal imbróglio.

Nesse sentido, deve o tomador de decisão, ao atribuir efeitos jurídicos a um determinado fato, levar em consideração, de forma comprometida com a realidade, os seus reflexos em situações não abarcadas pela tutela jurídica. Em encontro a tal perspectiva, vem disciplinar, inclusive, a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, que obriga o julgador a sopesar os efeitos práticos da decisão [4].

Assim, decisões judiciais que desconsiderem fatos amplamente presentes na sociedade, sob a justificativa de seguir estritamente a lei positivada, utilizando meramente a técnica da subsunção [5], podem acabar por não atingir o fim último da tutela jurisdicional em um modelo constitucional, qual seja, a proteção de direitos fundamentais. Um caso recentemente julgado que suscitou essa discussão foi o RE 1.045.273, com repercussão geral, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal vedou o reconhecimento de novos vínculos de uniões estáveis referentes ao mesmo período em que já vigorava um casamento ou união estável anterior [6].

As ditas uniões estáveis simultâneas e/ou uniões estáveis envolvendo pessoas casadas são uma realidade em diversas famílias no Brasil, principalmente no interior do país. A decisão em questão impede que o(a) companheiro(a), que em diversas ocasiões sequer sabe da existência de um outro núcleo familiar, faça jus a qualquer tipo de direito previdenciário. Ou seja, em prol do dever de fidelidade e monogamia, acaba por se punir não o cônjuge/companheiro poligâmico, mas todo um núcleo familiar.

Ora, se por um lado a norma não é apenas reflexo da realidade, tendo algum poder de condicioná-la, por outro, em uma sociedade plural, a determinação do seu conteúdo deve se dar em uma relação de influências recíprocas com a vida social, de modo atento aos seus efeitos. Por essa razão, a preocupação com os reflexos jurídicos dos juízos negativos de juridicidade deve ocupar amplo espaço no momento das decisões judiciais.

Dessa forma, a interpretação adequada será aquela que conseguir concretizar o sentido da proposição normativa dentro das condições reais numa determinada situação. É dentro deste contexto que se insere, por excelência, o papel das Cortes de Justiça, principais intérpretes dos princípios e políticas estabelecidas pelo legislativo.

Luís Roberto Barroso sustenta que Supremas Cortes e Cortes constitucionais, em um regime democrático, assumem três funções primordiais: contramajoritária, através da invalidação de leis e atos normativos de outros Poderes; representativa, por meio do atendimento de demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas; e iluminista, quando da promoção de direitos sociais que ainda não conquistaram adesão majoritária, papel este assumido em nome do processo civilizatório [7].

A função representativa, bem como a função iluminista, servem de substrato teórico para que a Suprema Corte, em suas decisões, de certa forma, possa reconhecer direitos aos cidadãos que se encontrem vulneráveis em determinadas situações sociais, mesmo que o legislativo não tenha a vontade política de seguir esse caminho.

Em diversos momentos o STF foi exitoso nessa tarefa. Dentre eles, pode-se citar a garantia de direitos plenos aos casais homoafetivos, a interpretação protetiva da Lei Maria da Penha e a garantia do sistema de cotas nas universidades públicas. No entanto, em algumas situações, a confusão entre duas premissas fáticas, constantemente enraizadas no imaginário social, impede uma atuação ainda mais progressista e coerente: a diferença entre conceder direitos e estimular condutas.

O precedente supracitado abriga essa controvérsia. Caso o resultado do julgamento fosse diverso, não se estaria a conceder "carta branca" para que os cidadãos mantivessem casamentos ou uniões estáveis simultâneas, tampouco se extinguiria do ordenamento jurídico o dever de fidelidade e monogamia. Ter-se-ia, de outro modo, apenas a ponderação de tais valores frente a outros, como a tutela de interesses existenciais daquele que desconhece relações simultâneas de seu companheiro, de forma que tais deveres não seriam mais vistos de maneira absoluta.

A não atribuição de efeitos jurídicos a tais fatos não traz como consequência a sua extinção da realidade, mas, apenas, a ausência de tutela dessas situações. O que se coloca em risco, em última instância, é a própria estabilidade e segurança das relações sociais.

Discussão semelhante se dá quanto à descriminalização da interrupção da gestação. Ao cogitar a substituição do tratamento penal pelo da saúde pública, pretende-se oferecer respostas adequadas ao dramático contexto de gravidez indesejada, o que, por sua vez, não se confunde com a defesa da prática. Os efeitos perversos da criminalização como única resposta ao aborto também sugere a necessidade de reconhecer a sua realidade e conferir à pauta tratamento jurídico fora do âmbito penal.

Cumpre ao Judiciário, no Estado Constitucional de Direito, assumir novas responsabilidades no sentido da concretização de soluções reclamadas pelas novas demandas sociais, aceitando seu papel, na condição de corresponsável, pela promoção de interesses que albergam objetivos e valores constitucionais.

Em uma atuação judicial pautada no fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, a proteção de direitos fundamentais é intrínseca à atividade jurisdicional. Desse modo, um olhar atento do operador do direito, nas mais diversas esferas, à realidade social existente é essencial para que o sistema jurídico represente de fato os seus jurisdicionados.

[1] "Tradicionalmente, tem-se afirmado que o Direito apenas se interessa por certos fatos específicos da vida humana, sobre os quais faz incidir suas normas, atribuindo-lhes qualificações e efeitos particulares. Nessa perspectiva, amplo espectro de atividades ou fatos humanos seriam indiferentes ao mundo jurídico, alheios à regulamentação normativa, invulneráveis à atuação do direito. Se o Direito, porém, encontra sua relevância justamente na função de garantir a vida humana em comunidade, torna-se difícil negar relevância a toda e qualquer atividade humana, como exercício da liberdade garantida pelo Direito. Assim, fatos banais como ir à praia, tomar o ônibus, enviar mensagens, ou qualquer outra ação humana, por mais ingênua que pareça, podem ser considerados expressão da liberdade garantida pela ordem jurídica — embora nem sempre tais atividades produzam efeitos imediatos ou específicos. A partir do sutil mecanismo de garantir liberdades por meio da limitação das liberdades, desponta o Direito como instrumento para regulamentar a vida em sociedade, cuja existência é assegurada por meio de normas que disciplinam o procedimento humano. Por isso mesmo, como sintetizado por Norberto Bobbio, 'a experiência jurídica é uma experiência normativa'" (TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil: Teoria Geral do Direito Civil, v. 1, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 3).

[2] Por todos, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - 24a edição - Rio de Janeiro, Editora Forense, 2011, pág. 381.

[3] "O direito é ciência social que precisa de cada vez mais aberturas; necessariamente sensível a qualquer modificação da realidade, entendida na sua mais ampla acepção. Ele tem como ponto de referência o homem na sua evolução psicofísica, 'existencial', que se torna história na sua relação com outros homens. A complexidade da vida social implica que a determinação da relevância e do significado da existência deve ser efetuada como existência no âmbito social, ou seja, como 'coexistência'" (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional; trad. Maria Cristina De Cicco. 3ª ed., rev. e ampl. — Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1 e 2).

[4] Artigo 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018 ao DL 4657/42)

[5] "A despeito da racionalidade lógica do silogismo, há duas premissas equivocadas que autorizam a subsunção. A primeira delas é a separação entre o mundo abstrato das normas e o mundo real dos fatos no qual aquelas devem incidir, já que, a rigor, o direito se insere na sociedade e, por conseguinte, os textos legais e a realidade mutante se condicionam mutuamente no processo interpretativo. Em segundo lugar, a subsunção distingue artificialmente o momento da interpretação da norma abstrata (identificação da premissa maior) e o momento da aplicação da norma ao suporte fático concreto (enquadramento da premissa menor ao texto normativo). Contrariamente a tal compreensão, não é possível interpretar a norma aplicável sem levar em conta a hipótese fática que, por sua vez, se encontra moldada pelas normas de comportamento estabelecidas pelo direito (o qual condiciona a atuação individual. Daí a unicidade da interpretação e aplicação, sendo falsa a ideia de que haveria normas ideais em abstrato, capazes de tipificar e captar as relações jurídicas em concreto". TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil: Teoria Geral do Direito Civil, v. 1, 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 75

[6] A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. STF. Plenário. RE 1045273, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/12/2020 (Repercussão Geral — Tema 529)

[7] BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, Representativo e Iluminista: Os papéis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis, 2017.

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Autor(es):
David Igor Rehfeld e Beatriz Oliveira
Publicado em 09/06/2021 no Conjur