Resumo: A Constituição Federal de 1988 adotou um paradigma pluralista quanto às modalidades de família juridicamente tuteláveis, apontando expressamente em seu texto as famílias matrimonial, convivencial e monoparental. Ao se compreender que esse rol é exemplificativo, e não taxativo, surge a indagação sobre a qualificação jurídica de uma relação social como familiar, isto é, qual o requisito necessário para se compreender um fato social como família para efeitos de proteção estatal. O presente trabalho aborda essa questão à luz da técnica interpretativa das cláusulas gerais, a fim de demonstrar que a conceituação hermética seria contrária aos fundamentos constitucionais de pluralidade porque excludente.
Palavras-chave: conceito de família – família homoafetiva – cláusulas gerais – pluralidade das modalidades de família
Abstract: The 1988 Brazilian Federal Constitution adopted a pluralistic paradigm regarding legally assured family modalities, expressly quoting the matrimonial, convivial and single parent families in its text. The understanding of such roles as examples, and not as patterns, raises the essential issue about the legal qualification of whether to categorize social relationships as families or not. That means, the question that needs to be answered is what should be the necessary requirements to call a social relationship as a family for the purposes of State protection. This paper addresses this issue in light of the interpretative technique of general clauses, in order to demonstrate that the hermetic conceptualization would be contrary to the constitutional foundations of plurality because its exclusiveness.
Key words: family concept - homoaffective Family - general clauses - Plurality of family modalities
1 Introdução
A família é um fato social considerado pela Constituição Federal como base da sociedade. Diante de sua importância, é pertinente indagar-se, então, a respeito de sua conceituação. Em outras palavras, o que caracteriza a relação familiar e a distingue de outras relações sociais?
Durante muito tempo, o casamento deteve o monopólio da tutela jurídica estatal dedicada à família. Portanto, era apenas a união devidamente formalizada entre pessoas de sexos diversos que gozava de efeitos jurídicos.[2] Substancialmente, o casamento dinamizava-se entre seus membros mediante uma estrutura patriarcal e hierarquizada, formando o que se denomina de família clássica[3].
A Constituição Federal de 1988 inovou ao conferir tutela jurídica expressa não apenas à família matrimonial, mas também a outras modalidades: a família monoparental (art. 226, §3º) – aquela que não é baseada em conjugalidade – e a família formada pela união estável (art. 226, §4º). Com isso, inaugura-se um novo paradigma protetivo, baseado no princípio da pluralidade das modalidades familiares.
Certamente as mudanças promovidas pela Constituição Federal de 1988 ultrapassam sobremaneira a ampliação textual das modalidades de família juridicamente tuteláveis. Os contornos humanistas da Constituição Cidadã elevaram a dignidade humana a pedra de toque de todo o ordenamento jurídico, acarretando, por via de consequência, uma mudança substancial nas relações familiares, agora pautadas na igualdade entre seus membros. Nesse contexto, a família contemporânea identifica-se com caracteres democráticos[4] e eudemonistas,[5] instrumentalizando-se ao livre desenvolvimento da personalidade de seus membros.
Diante disso, é também possível concluir que as modalidades apresentadas expressamente pela Constituição não compõem um rol taxativo, mas sim, um rol exemplificativo. Essa afirmação é confirmada pela ampliação da tutela jurídica às famílias homoafetivas conferida pelo julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADIN 4277[6] de competência do Supremo Tribunal Federal, seguidas da Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça, possibilitando o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O problema que se pretende enfrentar parte, portanto, da seguinte indagação: como identificar um fato social como relação familiar, para fins de tutela jurídica, ante à compreensão plural das modalidades familiares?
2 O problema dos conceitos jurídicos
A conceituação de institutos jurídicos está historicamente associada à metodologia positivista de aplicação do fenômeno jurídico por meio da operação lógica da subsunção.[7] Embora tenha sido hegemônica em outros contextos históricos, a aplicação subsuntiva da norma tem sido criticada no direito civil contemporâneo,[8] pois dificulta a normatividade principiológica e axiológica da Constituição Federal, na medida em que dissocia o processo interpretativo, ignorando que a norma jurídica se realiza no mundo concreto e para as pessoas concretas. Além disso, conceituar significa delimitar o alcance, de modo que ao se dizer o que algo é, automaticamente se deduz aquilo que não é e, assim, excluem-se fenômenos de seu âmbito de incidência. Por isso, pertinente a lição de Giselda Hironaka:
O problema surge pela obviedade de que conceituar significa limitar fenômenos pela convenção de padrões que nem sempre estão ligados à convenção da maioria, senão as do que detêm o poder, enquanto argumento de autoridade. Por isso, dizer o que família “é” para o direito necessariamente requer que fechemos os olhos para um sem-número de fatos sociais essencialmente representativos da família, mas que por vezes não se encaixariam nas letras frias de um invólucro qualquer do Direito positivado. Daí a necessidade de que os conceitos sejam cada vez mais abertos, especialmente em matéria de família.[9]
É exemplificativo da consequência excludente da conceituação de família o Projeto de Lei 6.583/2013, denominado “Estatuto da Família”, segundo o qual, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. O conceito restrito adotado no Projeto vai de encontro à pluralidade familiar enquanto princípio constitucional, pretendendo anular a conquista do direito à constituição de família reconhecido pelo Judiciário à população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais).
O Projeto de Lei 6.593/2013 evidencia o que dizia Hironaka: conceituar família implica ignorar fatos sociais representativos das relações familiares. Pior: não é necessário excluir textualmente uma relação social para que ela seja marginalizada. Basta escolher elementos descritivos da premissa menor que se incumbam de restringir o âmbito de aplicação da norma e tem-se como resultado uma discriminação – diga-se, nada velada, porém não expressa.
De teor similar ao PL 6.583/2013, a lei distrital 6.160/60 buscou conceituar restritivamente entidade familiar enquanto o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável ou a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
A constitucionalidade de tal lei foi questionada por meio da ADI 5971, ocasião em que o STF se posicionou, por unanimidade, pela inconstitucionalidade material da norma, no tocante a não inclusão de famílias homoafetivas no conceito legal supracitado. Dessa forma, determinou-se que fosse realizada a interpretação conforme a Constituição, sob a alegação de que a única hermenêutica compatível com o texto constitucional para essa lei é aquela que não exclua do conceito de entidade familiar, para fins de aplicação das políticas públicas nela prevista, o reconhecimento de união estável contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo.[10]
3 As cláusulas gerais e o conceito indeterminado
As cláusulas gerais surgiram, enquanto conceito, na Alemanha, referindo-se a uma estrutura normativa cuja prescrição é vaga, isto é, cujo conteúdo não está previamente descrito[11]. Tal espécie normativa foi utilizada por diversos países na elaboração de seus textos legais, não sendo o Brasil diferente. Gustavo Tepedino, ao referir-se às cláusulas gerais, conceitua-as como sendo normas que não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para a aplicação de demais disposições normativas.[12]
Como um dos principais exemplos de cláusula geral, tanto no ordenamento jurídico brasileiro, quanto no alemão, pode-se citar a boa-fé. A cláusula geral da boa-fé serviu ainda para evidenciar a complexidade do conteúdo da relação obrigacional e o seu intrínseco dinamismo, o que veio a ser objeto da reflexão civilista notadamente na segunda metade do século XX. Os tribunais apoiavam-se nas normas vagas conferindo-lhes sentido e aplicabilidade prática[13].
Importante ressaltar que, até mais do que a jurisprudência, a doutrina tem papel essencial para delimitar a extensão de aplicação das cláusulas gerais. Isso porque caberia aos doutrinadores primordialmente a construção de parâmetros, a partir da análise comparativa de casos concretos. Tais parâmetros resultariam em figuras jurídicas derivadas da cláusula geral, servindo para sua concretização no caso concreto. Da boa-fé, por exemplo, institutos como a supressio e a surrectio[14], ambas construções doutrinárias, são utilizados para aplicação prática da boa-fé ao caso concreto.
Dessa forma, percebe-se que não se trata de mera casuística. O legislador não optou por descrever a factualidade, tampouco um detalhamento dos elementos a serem considerados pelo intérprete. Trata-se de observar no caso concreto a incidência dos elementos anexos ao instituto da cláusula geral, cabendo ao julgador observar se tal situação deve ou não se enquadrar juridicamente no instituto em questão[15].
Percebe-se, portanto, que a lei, em geral, não traz uma conceituação do que seria a boa-fé, mas nem por isso a jurisprudência deixa de aplicá-la na resolução de casos concretos. Ao fazer isso, os tribunais, com auxílio doutrinário, ajudam a construir juridicamente o que pode e o que não pode ser enquadrado como boa-fé, aplicando um limite para o instituto.
Ao adentrar nessa esfera de análise é possível concluir que a ausência de uma definição de boa-fé por meio do texto legal não implica na ausência de conceituação do instituto. Isso porque se mostra necessário que se entenda o que pode ou não ser enquadrado nessa seara, sob risco de esvaziar-se o instituto. Em outras palavras, não se pode arriscar que a ausência de conceituação implique em abranger toda e qualquer situação jurídica. Quando a ausência de limites resulta na abrangência dentro de certo instituto de todas as situações existentes, consequentemente, tal conceito resultará em inaplicabilidade prática, visto que pode ser utilizado para toda e qualquer situação jurídica.
A ideia das cláusulas gerais não é essa. O que se busca fazer é conceituar por meio de padrões de comportamento e de situações standards, definindo o que se enquadra ou não em tal definição, sem, contudo, ficar refém de um conceito hermeticamente fechado pelo texto legal.
Nesse sentido, afirma Pietro Perlingieri que “legislar por cláusulas gerais significa deixar ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato” [16].
A vagueza semântica não é por acaso, mas proposital. Ocorre justamente quando estamos na presença de uma dessas zonas cinzentas. Indica um específico fenômeno semântico e pragmático, qual seja a imprecisão do significado. Um termo ou um enunciado é vago quando o seu uso apresenta, além de hipóteses centrais e não controversas, alguns casos-limites[17].
É justamente essa vagueza proposital que permitirá com que a norma se amolde a situações novas, não previstas originariamente pelo legislador, sem necessidade de se alterar o texto legal[18]. Dessa forma, as cláusulas gerais podem ser utilizadas com o intuito de acompanhar as mudanças sociais, por meio simplesmente de uma nova interpretação do judiciário acerca do instituto previsto em lei, sem com que isso vá de encontro ao texto normativo.
4 Família como cláusula geral
Uma vez que se entenda o que é uma cláusula geral bem como a sua função, é possível refletir, levando em consideração o perfil funcional da família enquanto instituto jurídico e social, a possibilidade de enquadramento de tal conceito no escopo dessa modalidade normativa.
Assim como a boa-fé, a família, vista sob o prisma de um instituto jurídico, é um conceito lógico-abstrato. Dessa forma, não é possível conceituar tal instituto por meio de um texto legal, visto que isso implicaria em uma tentativa de amoldar a família em uma definição hermética, não sendo possível incluir a totalidade da realidade social acerca de tal instituto.
As tentativas legais de conceituação, portanto, poderiam resultar em uma forte exclusão de direitos para algumas formas de entidade familiar e provavelmente não abrangeriam a diversidade existente por detrás de tal instituto.
Mais do que isso, como já observado, a família se modifica rapidamente, englobando novas formas de entidade familiar ao redor da história. Dessa forma, a tentativa legal de definição do que é e do que não é família cairia rapidamente em desuso e/ou teria que ser constantemente alterada para que fosse possível acompanhar as modificações sociais. Isso porque, como já observado, o sistema jurídico deve prezar também pelo perfil funcional de seus institutos, para que eles continuem tendo utilidade prática e representando a realidade social que os circundas.
Assim, cabe a reflexão: seria possível o enquadramento do conceito de família enquanto regra jurídica, sabendo que as regras possuem uma carga semântica maior do que as cláusulas gerais e os princípios? Ao funcionarem pela lógica da subsunção, seria possível delimitar todas as modalidades grupais de relacionamento pessoal, com base em uma descrição teórica escrita, para dizer o que seria e o que não seria família?
Algumas situações são evidentes e não há discordância a respeito da adequação de tal modalidade em qualquer tentativa conceitual possível. Dentre elas, destaca-se primordialmente a família tradicional. Inquestionável que um casal, unido pelo vínculo matrimonial e com filhos concebidos na constância do casamento se adequaria em um conceito legal, seja ele qual for, e, portanto, na lógica da subsunção. O problema reside, entretanto, em restringir o conceito a tal modalidade.
Em contrapartida, alguns vínculos grupais são evidentemente não enquadráveis em uma eventual tentativa legal de conceituação de família. Como exemplo, pode-se citar um grupo de alunos de uma mesma classe universitária. Por mais que possam vir a criar vínculos amistosos uns com os outros e mesmo que compartilhem bastante tempo de suas rotinas juntos, não serão considerados como família para fins legais. O vínculo que lhes uniu não foi o afeto, tampouco a genética, e sim uma situação fática de prestação de serviço educacional.
A dificuldade, contudo, reside em situações limítrofes. Modalidades familiares, como por exemplo, as anaparentais, mosaicos, pluriparentais ou até mesmo poliafetivas, não seriam facilmente enquadradas na lógica subsuntiva. Representariam, portanto, uma espécie de zona cinzenta[19]. Muito possivelmente, seriam excluídas de tal emolduramento legal, resultando em uma exclusão de direitos, distante da realidade fática.
Dessa forma, o conceito de família mostra-se incompatível com uma definição hermética e não flexível, por meio de uma regra. As situações limítrofes do que seria ou não enquadrado como família deveriam ser analisadas no caso concreto pelo judiciário, assim como se faz com as situações de aplicação dos deveres anexos da boa-fé, como já observado.
Os juízes, por sua vez, ao observarem o avanço e a modificação de entendimento da sociedade, conseguiriam julgar de forma mais coerente a situação em específico. Tal julgamento se aproximaria mais de uma tentativa de efetivamente representar a estrutura social existente e de não permitir que parcela expressiva dos agrupamentos pessoais permaneça sem tutela jurídica.
Nesse sentido, cabe ressaltar precedente recente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, em recurso contra o INSS, estendeu o direito à obtenção do salário-maternidade bem como da licença maternidade ao pai adotante, inserido em um contexto de família homoafetiva, apesar de ausência de previsão expressa na lei para tal:
DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE EXTENSÃO DO SALÁRIO E DA LICENÇA-MATERNIDADE AO PAI, A PARTIR DA GUARDA JUDICIAL, ADOTANTE, EM FAMÍLIA HOMOAFETIVA. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA, NO CASO. QUANTUM DEBEATUR. MANUTENÇÃO. DANOS MATERIAIS. HONORÁRIOS CONTRATUAIS DE ADVOGADO CONSTITUÍDO PELA PARTE. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO DE RESPOSTA. AUSÊNCIA DE AMPARO LEGAL A TAL PRETENSÃO, IN CASU. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. MANUTENÇÃO, NOS TERMOS DO R. DECISUM A QUO. APELAÇÃO DO INSS PROVIDA EM PARTE. RECURSO ADESIVO DA PARTE AUTORA DESPROVIDO. 1 - A inexistência de disposições legais expressas não impede que o magistrado supra lacunas por meio da analogia. 2 - Tendência do direito moderno de proteger as variadas formas de famílias e os interesses das crianças e adolescentes. Princípios com sede constitucional. Estatuto da Criança e do Adolescente. Estatuto da Primeira Infância. 3 - Ao pai solteiro, com guarda judicial, para fins de adoção, em contexto familiar homoafetivo, deve ser estendido o direito ao salário-maternidade e à licença-maternidade. 4 - A presença do genitor na infância é essencial ao desenvolvimento do recém-adotado. Negar a este o direito da presença de seu pai neste crucial momento da vida é violar o princípio da isonomia material, tendo em vista que as famílias homoafetivas devem dispor do mesmo tratamento dispensado às demais configurações familiares contemporâneas. 5 - A finalidade dos institutos das licenças parentais é privilegiar o desenvolvimento do infante, tendo prevalecente tez extrapatrimonial. 6 - A jurisprudência caminha no sentido de favorecer os interesses da família e da criança ao interpretar a aplicação, na prática, dos referidos institutos. Precedentes. 7 - Atendimento dos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia material e da vedação à proteção deficiente (...) [20].
Tal julgamento só foi possível por reconhecer a multiplicidade de arranjos familiares na contemporaneidade, não se restringindo a um conceito hermético e fechado de família. Dessa forma, o julgador pode se valer dos valores constitucionais e da análise da realidade social como base para se chegar a tal decisão.
5 Conclusão
A compreensão do Direito Civil brasileiro a partir dos valores postos na Constituição Federal de 1988, conhecida como constituição-cidadã e atribuidora de diversos direitos fundamentais, fez com que, paulatinamente, se reconhecesse a incidência dos direitos fundamentais até mesmo nas relações privadas, em âmbito nacional[21].
A opção do constituinte por colocar o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu-lhe uma dimensão positiva, indicando a necessidade de adoção de medidas promocionais para que ela seja plenamente alcançada. Essa opção, portanto, refletirá em todo o ordenamento jurídico, trazendo diversas consequências, também, ao Direito de família.[22]
A dignidade da pessoa humana, portanto, conferiu embasamento constitucional para inserir no próprio texto da Carta Magna tutela à multiplicidade de arranjos familiares, bem como fundamentação jurídica para o julgamento da ADIn 4.277 e da ADPF 132. Dessa forma, passou-se a entender a família como um direito de todos, positivado na ordem jurídica interna com status constitucional.
Nesse sentido, uma eventual tentativa de restrição do conceito de família por meio do legislador derivado resultaria em uma violação ao princípio da vedação ao retrocesso social. Isso porque, intimamente ligado à garantia constitucional da segurança jurídica, tal instituto visa garantir a proteção contra medidas retrocessivas, mesmo que elas não sejam abarcadas pelas figuras do direito adquirido, ato jurídico perfeito ou da coisa julgada[23]. Dessa forma, a tentativa conceitual hermética do vocábulo família, por meio da lógica da subsunção, poderia incorrer em eventual supressão de direitos, inadmitida pelo ordenamento jurídico pátrio.
Existe, porém, solução hermenêutica para esse aparente problema: considerar família enquanto cláusula geral, similar à boa-fé. Deve-se analisar, portanto, o instituto com uma vagueza semântica proposital, sendo tal conceito indeterminado, mas não indeterminável. É preciso que se dê margem de atuação ao intérprete para que, observando as circunstâncias fáticas, a existência de afeto e a estrutura organizacional da modalidade do arranjo interpessoal específica do caso, se enquadre ou não no instituto.
Desse modo, independentemente de movimentos reacionários que caminhem em sentido contrário às decisões do Supremo Tribunal Federal (backlash) e às conquistas recentes, os diversos modelos familiares poderiam contar com uma maior tutela no ordenamento jurídico. Isso porque, uma vez que se confira uma hermenêutica do instituto enquanto cláusula geral, tais modalidades se enquadrariam na concepção jurídica do instituto e estariam protegidos enquanto Direitos Sociais, da mesma forma que a família clássica.
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[*] Pós Graduando em Direito pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ). Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ) em 2019. Advogado.
* Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora . Advogada.
[2] Não se ignora que o direito de família, mesmo nesse contexto, tinha por objeto outras relações além das conjugais, como as relações de parentesco. No entanto, esclarecem Muniz e Oliveira: “[o] Direito de Família é aquele setor do direito privado que disciplina as relações que se formam na esfera da vida familiar. São relações que têm origem no casamento, no fato natural da procriação e na adoção. Dentre estes, devemos notar que o casamento produz os efeitos mais amplos. [...] Donde decorre, portanto, que a família juridicamente abrange o conjunto de pessoas que estão ligadas por essas relações. Mas se trata então denominada grande-família. Por oposição, desenvolveu-se a pequena-família, porque o grupo é reduzido ao essencial: pai, mãe e filhos.” (OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 3 ed. Curitiba: Juruá, 1999. p. 11-12.) Há de se reconhecer, assim, que o casamento, embora não seja a única relação familiar possível, era o parâmetro de licitude das relações dele decorrentes: a filiação era legítima ou ilegítima conforme baseada ou não no casamento, o reconhecimento de filho fora do casamento era restringido quando o pai era pessoa casada e assim por diante. Além, decerto, da exclusão de tutela jurídica a outras modalidades de convivência conjugal não baseadas no casamento.
[3] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017. p. 158-160.
[4] MORAES, Maria Celina Bodin de. A família democrática. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 207-234.
[5] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A incessante travessia dos tempos e a renovação dos paradigmas: a família, seu status, e seu enquadramento pós-modernidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, p. 153-157, jan.-dez. 2006.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Perda Parcial de Objeto. Recebimento, na Parte Remanescente, como Ação Direta de Inconstitucionalidade. União Homoafetiva e seu Reconhecimento como Instituto Jurídico. Convergência de Objetos entre Ações de Natureza Abstrata. Julgamento Conjunto. Encampação dos fundamentos da ADPF no 132-RJ pela ADI no 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação [...] Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal, Brasília, 05 mai. 2011. Disponível em:<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 01/07/2020.
[7] V. REHFELD, David Igor. O conceito jurídico de família diante do princípio constitucional da pluralidade de arranjos familiares. Monografia (Conclusão do Curso de Direito) – UFRJ/FND, Rio de Janeiro, 74 p. 2019.
[8] Segundo Tepedino: “A subsunção parte de duas premissas equivocadas: (i) a separação do mundo abstrato das normas e o mundo real dos fatos, no qual aquelas devem incidir; (ii) a separação entre o momento da interpretação da norma abstrata (premissa maior) e o momento da aplicação ao suporte fático concreto (premissa menor). Como conseqüência, admite-se que, em tese e de antemão (em relação ao momento da incidência da norma), haveria valorações legítimas efetuadas pelo legislador, normas de conduta às quais deve se moldar, em abstrato, a sociedade.” (TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. Revista Trimestral de Direito Civil (RTDC). Rio de Janeiro, Padma, v. 34, 2008. Disponível em: <https://ibdcivil.org.br/revista/volume-no-34/> Acesso em 28 jun. 2020.
[9] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. O conceito de família e sua organização jurídica. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Tratado de Direito das Famílias. 3 ed. Belo Horizonte, IBDFam, 2019. p. 57.
[10] EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.160/2018 DO DISTRITO FEDERAL. RECONHECIMENTO COMO ENTIDADE FAMILIAR DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO PARA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DA FAMÍLIA NO DISTRITO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÇÃO. PARCIAL PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (...)
Esta SUPREMA CORTE, portanto, proclamou que o texto constitucional proíbe explicitamente a discriminação em razão do sexo ou da natural diferença entre homens e mulheres, afirmando a existência de isonomia entre os sexos, em reconhecimento do direito de minorias e de direitos básicos de igualdade e liberdade de orientação sexual (ADI 4.277 e da ADPF 132, Rel. Min. AYRES BRITTO, Pleno, DJ de 14/10/2011). Em face desses importantes precedentes da CORTE, na presente hipótese é necessária a aplicação de interpretação conforme à Constituição, pois a norma apresenta vários significados, nem todos compatíveis com as normas constitucionais, existindo, portanto, o denominado “espaço de decisão (= espaço de interpretação)” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5971. Data de Julgamento: 13/09/2019
Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341261667&ext=.pdf>
[11] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2a. ed.. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 84.
[12] TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do código civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. XIX.
[13] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2a. ed.. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 87.
[14] Anderson Schreiber entendeu que determinada conduta continuada ou a inércia qualificada de uma das partes pode criar uma legítima expectativa na outra parte de que a execução seja mantida na forma como vem sendo realizada (surrectio) ou de que determinada faculdade não seja exercida (supressio).Tais institutos se relacionariam com a ideia de Venire Contra Factum proprium. SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 408.
[15] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2a. ed.. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 90.
[16] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 27.
[17] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2a. ed.. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.94
[18] Nesse sentido, deve-se relacionar a ideia no âmbito da historicidade dos conceitos, já apresentada no segundo capítulo. Carlos Konder explica o fenômeno ao pontuar que os “históricos” transformam os institutos jurídicos numa entidade autônoma e abstrata que sobrevive por todos o tempo em profunda evolução até o presente e se legitima exatamente por sua antiguidade e sobrevivência, sem necessidade de alteração do texto, se amoldando a realidade social. (KONDER, Carlos Nelson de Paula. Apontamentos iniciais sobre a contingencialidade dos institutos de direito civil In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz Costa; MEIRELES, Rose Melo Vencelau (Orgs.). Direito Civil. 1a ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 38)
[19] O termo “zona cinzenta” vem sendo usado na atualidade em diferentes análises que tocam o campo da política. Trata-se de uma zona de contornos mal definidos. Teve sua origem no livro “Os afogados e os sobreviventes” (1986), escrito pelo autor italiano e sobrevivente dos campos de concentração de Aushwitz Primo Levi, para se referir a longa cadeia de conjunção entre vítimas e algozes, naquele contexto, em que o oprimido se torna opressores e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima. Basicamente, é utilizado para referir-se a situações não tão obvias e longe dos extremos. Representaria algo localizado no meio do espectro de análise (LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 1a ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2016).
[20] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Direito Administrativo. Servidor Público. Direito de Extensão do Salário e da Licença-Maternidade ao Pai, a partir da guarda judicial, adotante, em família homoafetiva. Danos Morais. Ocorrência, no caso. Quantum Debeatur. Manutenção. Danos materiais. Honorários Contratuais de Advogado Constituído pela Parte. Impossibilidade. Direito de Resposta. Ausência de Amparo Legal a tal pretensão, in casu. Honorários Advocatícios Sucumbenciais. Manutenção, nos termos do R. Decisum a Quo. Apelação do INSS provida em Parte. Recurso adesivo da Parte autora desprovido [...]. TRF-3 – ApCiv 00008444920154036128 SP, São Paulo, 17 out. 2019. Disponível em: <https://trf-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/770259738/apelacao-civel-apciv-8444920154036128-sp/inteiro-teor-770259748?ref=feed>. Acesso em: 24 nov. 2019.
[21] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25a ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p.584.
[22] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito Brasileiro. 2a ed.. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2017. p.51.
[23] SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:
manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra, v.82, 2006, p. 249.